Com a vacância, a vaca foi para o brejo
A noite estava radiante, apesar de pequenas nuvens cinzentas. Nas ruas, as pessoas com semblante de alegria, cumprimentavam os amigos e conhecidos - e até desconhecidos - desejando-lhes “Feliz Ano Novo”. Eram aproximadamente 20 horas quanto Antonio dos Reis chegou à sua residência, na Vila Bordignon, após deixar a festa de confraternização na Enplacon, empresa construtora sediada próxima à sua casa. Abraçou os filhos e a esposa, sentou-se à frente da televisão para assistir ao “Jornal Nacional” e, em seguida, a novela “Avenida Brasil”, seus dois programas diários favoritos, antes de se recolher para dormir. Essa noite seria diferente: ficaria acordado até a meia noite, abriria uma garrafa de champanhe e brindaria com sua família.
O relógio marcava 23,30 horas quando as nuvens escureceram, raios e trovões espocaram e a chuva começou a cair forte, num barulho ensurdecedor. Maria Rita, esposa de Antonio, correu para recolher algumas peças de roupa que à tarde deixou no varal “quarando” e fechou todas as janelas. Ela percebeu que pelos lados do bairro da Santa Cruz, onde nasce o córrego Santo Antonio, o céu enegreceu. Preocupada, disse ao marido:
– Estou com medo, na última enchente um carro caiu no córrego, e morreram quatro pessoas e ele continua sem guard rail em suas margens, disse ela, e foi até o canto da sala acender uma vela para Nossa Senhora Mãe dos Aflitos.
Como naquela noite fatídica, Antonio pegou seu guarda-chuva e foi até as margens do córrego. Viu que a água descia com violência. Em menos de duas horas, por volta da 1h15, o transbordamento já atingia as ruas de acesso em mais de 100 metros; não se avistava mais a avenida, encoberta por mais de um metro de água. A situação era caótica.
Em pouco tempo, carros do corpo de bombeiros chegaram ao local e os policiais iniciaram o processo de evacuação das residências que estavam em situação de risco, com trincas enormes causadas pela invasão das águas. O comandante Pedro Henrique chamou Antonio e falou firmemente:
– Essa situação não é mais de emergência. Vá até a casa do prefeito Carlos Munhoz e peça que ele decrete estado de calamidade pública.
Eram 2 horas quando Antonio acionou a campainha da casa do prefeito. Explicou toda a situação e ouviu:
– Eu não posso assinar. Meu mandato terminou à meia noite. E fechou bruscamente a porta.
Desesperado para cumprir sua missão, Antonio foi até a residência do prefeito eleito Gustavo Rossi e apelou para que ele assinasse o decreto. Mas, teve até certo ponto uma decepção. Gustavo o acalmou e disse:
– Eu vou para lá, agora, para ajudar as pessoas, mas não posso assinar o decreto de calamidade pública: fui eleito e diplomado, mas somente serei empossado às 9 horas de hoje, pela vereadora mais votada, Luzia Duzo. Após, poderei assinar tudo.
Antonio pensou em ir pedir para que o Padre Paiva assinasse o documento, mas foi desaconselhado pelo comandante Pedro Henrique. “Ele é autoridade eclesiástica, não pode interferir na administração pública”, disse. E emendou, “procure o Valter Polettini, ele entende bem dessas coisas”.
Em sua casa, obviamente de pijama, solicitamente Valter recebeu Antonio em sua sala e explicou:
– O que está acontecendo nessa hora é o que chamamos de “vacância de poder”, o Carlos Munhoz não pode assinar porque seu mandato terminou à meia noite, e o Gustavo Rossi só poderá assinar após sua posse, às 9 horas. Nesse caso, o juiz tem poder para decretar estado de calamidade pública.
Eram 5 horas quando Antonio conseguiu a assinatura do juiz e foi para as margens do córrego para entregar o documento para o comandante do Corpo de Bombeiros. No local, deparou que a água baixara e se mantinha apenas entre as calhas do córrego.
Agnelo Franco, patrão de Antonio na Enplacon, estava no local com homens, máquinas e caminhões, ajudando nos rescaldos da tragédia. Antonio disse ao seu patrão sem titubear:
- A vaca foi para o brejo, corri a madrugada toda, mas graças a Deus nada aconteceu de grave. E foi dormir. Feliz da vida por ter sido útil. Ou quase útil.
Mauro de Campos Adorno Filho é jornalista,
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